23 de agosto de 2013

A CORRENTE Capítulo 11 - Estevão Ribeiro

Série A CORRENTE:
(Leia Antes: Prólogo, Capítulos: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10)



Bruna? É você né? Você venceu! Me mata logo!

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Ainda afogado em incertezas, Roberto espera pacientemente por algum sinal de que não está sonhando ou de que a chance de sair do apartamento de seu vizinho não passa de uma armadilha – seja de sua mente ou da estranha Bruna. Depois das provações das últimas horas, duvida até de si mesmo.
O que lhe parece é que seu cérebro, antes tão ardiloso, agora se ocupa em pregar-lhe peças. Se antes estava fugindo de um ser bestial de pele destruída pelo fogo, agora olha para o cenário da perseguição e percebe que ele não existe. Não do jeito que vivenciou. E este é o grande problema: Roberto não sabe se enfrenta as trevas do desconhecido ou as de sua imaginação.
– Talvez eu esteja louco – divaga, falando sozinho, como se quisesse provar o que fala. – É, na verdade nada disso está acontecendo. É tudo obra da minha mente!
Sorri e parece gostar da ideia.
– Devo estar numa camisa de força em algum hospício... Não, melhor, estou em casa sonhando, esperando o momento certo para acordar, ligar para Líli e contar tudo que eu enfrentei – fala, agarrando-se a esta probabilidade como se fosse seu último recurso.
E sentado ao pé da porta, ele espera. Porém, a realidade que quer não chega. Esfrega os olhos com força, tentando acordar daquele sonho maldito, mas não consegue. A não ser que não esteja sonhando.
Roberto tenta achar algo de anormal naquela sala. Olha para os cantos e vê figuras disformes na penumbra, criadas pelos seus olhos na tentativa de dar forma ao que não consegue interpretar.
Olha para as esculturas em epóxi que André colecionava e para o vaso de ornamentos indianos no canto esquerdo da sala, com uma planta quase morta, arqueada para frente como um sertanejo rezando por água. Também olha para o ventilador de teto que traz no centro uma lâmpada fluorescente em forma de gota. Não vê nada de anormal.
Em uma última verificada, olha em meio à penumbra o tributo máximo ao narcisismo de seu finado vizinho, um retrato enorme feito em estúdio pendurado na parede, lançando o seu olhar sedutor para quem ousasse encará-lo. Imortalizado naquela foto sobre o bufê, André pouco lembra o cara agressivo que socara Roberto, achando que ele invadira a sua caixa postal ilicitamente. E por mais que Roberto dissesse não ter feito, ele bem sabe que fez.
Contempla o retrato de André como se o morto tivesse alguma parcela de culpa na ruína de sua vida. Controla o impulso de pegar o vaso e atirar contra o retrato, matando a planta desidratada e acabando com aquele ar de sedutor do dançarino.
Mas não consegue se conter por muito tempo. Tomado pelo ódio, investe contra o retrato, mais precisamente o rosto. Primeiro, dá um soco e um berro gutural. O urro continua, uma mistura da raiva com a dor da mão sangrando. A segunda vítima é o vaso. Roberto estilhaça de vez a superfície de vidro, deixando o caminho livre para sua vingança. Usa os cacos de cerâmica para arranhar a foto, com especial atenção ao rosto. Os olhos são vazados. A moldura ainda sustenta a imagem de André como um quadro negro à mercê de um vândalo no colegial. O peito do dançarino é furado como se fosse de carne. Os atos do hacker denunciam a sua vontade de ver sangue jorrando de André.
Roberto apoia os braços no bufê e contempla a sua obra de arte. Ofegante, parece se sentir melhor, até que algo inesperado acontece.
Ao olhar atentamente para os furos, percebe pequenos pontos vermelhos aparecendo em todo o rosto de André. Ele se inclina para analisar de perto o sangue que verte pelos buracos. Olha para o estrago feito em sua mão.
– Até morto você me tira sangue, André! – diz Roberto, limpando-se na camisa.
Ao analisar melhor os seus ferimentos, percebe que não pode ser o seu sangue que mina do retrato. Ele olha espantado para o líquido viscoso que sai da imagem.
– Que merda é esta? Oh, meu Deus! O que está acontecendo?
Roberto volta o olhar para o seu próprio braço e consegue ver nitidamente as veias pulsando. Sente-se fraco, como se a vida estivesse abandonando-o. Encara novamente o quadro, que verte sangue.
Novos buracos se abrem na imagem para escoar todo o líquido vermelho.
Roberto sente sua pele ardendo, uma ferida sendo aberta. Seu rosto queima, ele grita ao sentir objetos cortando sua face e sente sua vida derramar-se úmida na pele. O que grita é indiscernível.
Urra, berra e, em pensamento, pede para que tudo aquilo acabe.
A maré rubra escorre pela parede e já toma o bufê, avança contra o chão. Parece ter a intenção de inundar a sala totalmente. Algo fura os seus olhos, trazendo ainda mais dor. Roberto se prepara para encontrar seu fim.
– Bruna? É você né? Você venceu! Me mata logo!
Uma voz vinda de toda a casa responde.
– Eu não sou a Bruna, Roberto, mas já que você perdeu seu tempo para falar comigo, eu gostaria que respondesse uma perguntinha que não está me deixando dormir em paz:
Roberto gela. Ele reconheceria esta voz mesmo se sua audição estivesse tão comprometida quanto a sua visão. É a voz da última pessoa que ele gostaria de ouvir, ou que gostaria de ver, se assim pudesse. Desesperado, tenta não se deixar levar pela loucura e se permite pensar que não ouviu nada.
– Se você soubesse que aquele e-mail iria me matar... Você teria mandado a maldita mensagem? – pergunta a grotesca figura perfurada do retrato, que aos poucos sai de sua moldura para ir de encontro a Roberto, como se estivesse passando por uma janela.
– And-dré? – gagueja Roberto, desesperando. Ele agora se arrepende de não ter deixado aquele lugar nefasto quando teve a chance. – C-como...
– DIZ, ROBERTO! – impera a figura disforme de André, agora fora da moldura, indo em direção a Roberto. – Você me mandaria aquele e-mail? Mandaria, hein? Hein? MANDARIA AQUELA PORRA DE E-MAIL? ME DIZ, CARALHO!
Roberto não consegue falar. Restringe-se apenas a tentar se afastar da criatura que vem em sua direção até encostar-se à parede. Suas pernas o traem novamente, mostrando-se submissas ao medo crescente. Com o rosto perfurado como o Roberto, André se aproxima o bastante para ficar à distância de uma respiração. Seu corpo quase toca o do hacker. O arremedo do dançarino encara o seu antigo vizinho. O rosto rasgado, os olhos perfurados como um espelho de ferimentos, ódio e rancor.
– Hm... Pelo jeito, você mandaria, não é, cara? – indaga André, contemplando os furos de onde ainda sai sangue. – Bem, já que você não tem um pingo de arrependimento... Eu não preciso me conter! Roberto sente o hálito de André, mas não consegue se mexer. O homem, já com a sanidade comprometida, se dá apenas ao luxo de continuar respirando, enquanto seu novo algoz levanta a mão até seu pescoço, envolvendo-o com os dedos. Agora nem respirar ele pode mais. Nem consegue gritar. Sua voz é abafada por sua traqueia partida e o sangue sobe pela garganta.
– Ahhh! – grita Roberto, sentado ao pé da porta, levando as mãos ao pescoço.
Ele demora a se localizar, olhando para todo o quarto na penumbra. Percebe que provavelmente tudo não passara de mais um pesadelo, tão real que é capaz de sentir o sangue em sua garganta.
Porém, outros elementos ao seu redor também põem em xeque a sua mente. No chão, pode ver pequenos pedaços, sendo que alguns refletem a pouca luz do ambiente. Roberto não tem dúvidas, são cacos do vaso e fragmentos de vidro do retrato, frutos da destruição que promovera.
Não querendo sequer olhar para aquela imagem amaldiçoada, pega a sua mochila, abre a porta e sai do apartamento sem virar para trás. Se tivesse um pouco de estômago, teria olhado para o retrato e constatado que a figura de André não está mais ali, apenas um grande e vazio recorte.

No corredor, Roberto olha para a porta de seu lar. Pensa na hipótese de ir até lá para ver se a polícia ainda está a sua procura no apartamento. O hacker chega a dar dois passos na direção da porta, mas recua, temendo o pior. Numa decisão que julga acertada, aperta o botão para chamar o elevador.
Roberto olha para os lados enquanto espera. A seta reluzente apontada para baixo indica que a sua condução para o térreo está descendo, podendo estar em qualquer um dos oito andares acima. Roberto decide não mais esperar. Mas a sorte parece mais uma vez lhe abandonar, e ele é avistado pelo soldado Da Matta.
– Com licença, senhor! – diz o soldado, dirigindo-se a Roberto, que está de costas para ele. – Pode me dar um minuto?
Roberto para. Sem se virar, responde.
– Sim? Em que posso ajudar?
O policial avança dois passos e Roberto se vira, esperando a voz de prisão ou uma arma apontada contra o peito. Da Matta o examina meticulosamente, como se procurasse a sua fisionomia em um arquivo particular de algum canto de sua memória. É uma mania de bom policial, mesmo quando a pessoa em questão não é suspeita.
– Você tem fogo? – pergunta o policial, puxando um cigarro do bolso esquerdo de sua camisa, esboçando um sorriso.
Roberto imagina se tratar de uma piada de mau gosto do policial, aprendida em algum seriado americano. Pede fogo, a pessoa estende a mão para lhe acender o cigarro e o policial, com uma velocidade incrível, o algema, mostrando depois a presa para os seus amigos.
Pensa em fugir, mas considera que o oficial à sua frente pode realmente não saber quem ele é. Se estiver certo e se a sorte der o ar de sua graça, ele só precisará agir naturalmente para se livrar daquele policial, uma atuação teatral cujo pagamento será a sua liberdade.
Sorrindo astuciosamente, Roberto encara o policial e percebe que ele aguarda ansiosamente algum parecer seu. Pode ser apenas a vontade incontrolável de fumar, mas também pode ser o nervosismo de uma captura – no caso, a de Roberto.
– Não, não tenho, cara – responde o hacker, tentando passar naturalidade para o policial, apalpando os bolsos. – Eu até fumo, mas saí de casa sem meu isqueir... Oh, meu Deus!
– O que foi, rapaz? – o policial nota que ele empalideceu ao pôr a mão esquerda no bolso da calça.
Nem Roberto acredita no que está em seu bolso. Ele contorna todo o pequeno objeto com o dedo para ter certeza do que se trata. Era meio áspero em uma de suas pontas e liso em sua extensão cilíndrica. Não havia dúvidas.
Pasmo, ele tira o objeto do bolso, já sabendo o que é, embora precise olhar para confirmar: o isqueiro que Bruna usou para se incendiar.
– Obrigado, cara – agradece o policial, tomando o isqueiro de Roberto e acendendo o cigarro. Ele o devolve sem dizer mais nada.
Roberto volta a olhar assustado para aquele objeto que deveria ser fruto de sonho ou ilusão. Mas ele é bem real em sua mão.
O policial caminha em direção ao seu posto inicial. Ao passar pela porta do apartamento de André, dá uma grande tragada em seu cigarro. Enquanto faz isso, fecha os olhos, sentindo um imenso prazer no ato.
Se Roberto não tivesse dado as costas para o policial, indo para a porta de acesso às escadas, veria a porta do apartamento de André se abrir e uma mão seca em carne viva surgir em direção ao corredor. Esta mão trêmula, com a palma voltada para cima e parcialmente fechada, faz o conhecido gesto do estalar de dedos, encontrando o polegar e o dedo médio.
Um frio percorre a espinha de Roberto, só que ele não sabe se o perigo está na escada ou atrás dele. Para e prende a respiração, voltando-se para trás a tempo de ver a mão grotesca terminar o gesto, incendiando o cigarro do policial.
– Mas que porra é esta? – grita o policial. Ele joga o cigarro que queimou os seus dedos no chão, pisando-o freneticamente.
Depois do susto, ele se vira para Roberto, que, desesperado, corre em direção à porta de acesso às escadas.
– Parado aí! – ordena o policial, apontando a arma para o hacker, que para. – O que você fez com meu cigarro? O que tinha naquele isqueiro?
– E-eu não fiz nada, cara! – afirma Roberto, com as mãos levantadas.
Da Matta o segura pela gola da camisa e o carrega para a porta de seu apartamento. Roberto tenta não ser tomado pelo pânico. – Você vai ver o que se ganha por desacato a uma autoridade!
Ao se ver em frente à sua porta, Roberto tenta resistir aos puxões do soldado. Da Matta se irrita quando percebe que o hacker não quer entrar e aponta a arma abaixo de seu queixo, intimidando-o.
Neste momento, ambos ouvem um grito vindo do apartamento de Roberto. É Lídia chamando Da Matta desesperadamente.
O policial deixa Roberto e corre para ajudar a queixosa. O hacker, ainda do lado de fora, vê o soldado cruzar a sala e entrar no corredor à esquerda, que leva ao seu escritório.
Cogita entrar no local, pois apesar de Lídia tê-lo entregado, ele ainda a respeita e tem um forte senso de proteção em relação a ela. Mas antes que possa agir, a porta se fecha abruptamente. Ele então se limita a ouvir os acontecimentos.
A porta espessa dificulta a tentativa do hacker de saber o que acontece, no entanto, consegue ouvir gritos de ordem e súplicas com nitidez.
Segundos depois, o silêncio impera no apartamento. Roberto se concentra e tenta ouvir algo mais. Busca tranquilizar-se, ficar com a sua consciência em paz para poder fugir dali. Não consegue ouvir nada e respira aliviado.
Mas a tranquilidade é quebrada por um tiro. Desesperado, Roberto tenta abrir a porta, torcendo a maçaneta, mas ela não cede. Sem muito que fazer e em pânico, deixa o local pelas escadas.
Chega ao térreo e passa pela portaria. O porteiro olha atravessado em sua direção, provavelmente avisado sobre a sua suposta periculosidade. Quando Roberto o vê pegar o interfone e discar para algum local, ele tem certeza.
“Só pode estar ligando para o meu apartamento!”, pensa, dando passos apressados ao mesmo tempo em que tenta agir com naturalidade. “Será que ele anda armado?”
A pergunta do hacker é respondida quando o homem se levanta, carregando um taco de madeira que usa para afugentar inconvenientes.
Sem esperar para ouvir nenhuma ordem do porteiro, corre em direção ao portão fechado. Ele chega a pensar em pular, porém prefere partir ao encontro do portão da garagem, que está se abrindo naquele instante. A garagem fica atrás de um grande jardim cercado por uma pequena mureta de plantas. Com uma disposição que descobre em si, pula a mureta, aterrissando no para-brisa de um carro que sai do prédio. O motorista, assustado, para o carro bruscamente, jogando-o para a calçada.
“Pelo menos, estou fora do prédio”, tenta consolar-se, com algumas escoriações e um pouco de sangue no abdômen. Levanta-se a tempo de ver o porteiro despontar no portão principal.
– Parado aí, seu Roberto! – grita, assustando alguns moradores que por ali passavam.
Entre o porteiro e Roberto há o carro de para-brisa quebrado. Com o taco mirando Roberto, o empregado tenta checar se o motorista estava bem. Mas se assusta ao ver que dentro do veículo uma mulher em torno de cinquenta anos sangra pela testa e pelo nariz.
Ela parece desacordada, ou pior, morta.
– Você é um assassino, Roberto! Você vai preso!
– Eu vou ser é morto, isso sim! – grita Roberto. – Me deixa ir embora senão vou morrer aqui mesmo!
O porteiro, próximo à vítima da aterrissagem desastrada, está disposto a não deixá-lo ir embora, porém uma mão sai do carro e segura seu braço. Ao ver o pedido de ajuda da mulher ensanguentada, o porteiro se apavora e solta o taco, caindo inconsciente no chão. Roberto também se assusta, mas percebe neste momento a oportunidade necessária para fugir.
Desejando ter asas nos pés, o hacker dobra a esquina e percebe que está sendo seguido por um Fiat Uno vermelho. Vai para a calçada, tentando escapar, mas o motorista consegue fechá-lo, parando e abrindo a porta, mostrando-se afinal. É Plínio, ou como prefere ser chamado na rede, Keyman. O mesmo que frustrou sua tentativa de roubar contas bancárias outra noite. Seu amigo.
– Entra! – grita o Plínio para Roberto, que pula para dentro do carro sem pestanejar.

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Resultado do sorteio do livro A Corrente: Vencedor @Guimcesar 

6 comentários:

Unknown disse...

Cara como faço para comprar seu livro, tô muito ansioso para saber o final desse livro.

Estevão Ribeiro disse...

Salve, Lucas! Duas formas: Tu pode comprar o e-book R$ 2,26 na Amazon BARATÍSSIMO. Ou pode comprar a edição em papel diretamente comigo, autografado, a R$ 25,00, já com frete incluso (dentro do Brasil) pelo vendas@ospassarinhos.com.br
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Maurício disse...

Esse livro , daria uma ótima adaptação para filme de terror . Seria ainda o primeiro assim do gênero aqui no Brasil , já pensou isso sendo produzido aqui no Brasil ? Nossa , muito bom ! Parabéns Estevão , seu livro é ótimo . Comecei a escrever um , mas me falta inspiração para termina-lo . Sucesso sempre , e que venham outros melhores escritos por você .

Estevão Ribeiro disse...

Mauricio, obrigado pelas palavras. O livro, em si, tem como marca a linguagem cinematográfica. Depois de anos escrevendo roteiro de histórias em quadrinhos ficou difícil não deixar que isso aparecesse no texto, mas o resultado foi esse. Um livro com potencial cinematográfico.
Estou sempre correndo atrás de alguém para produzir o livro. Vamos ver com essa nova lei do cabo.
Abraço!

Unknown disse...

Estevão, eu entrei em contato pelo e-mail vendas@ospassarinhos.com.br para saber mais informações sobre a compra do livro A Corrente, mas nao tive respostas, pooderia me retorar o e-mail, quero muito esse livro!
Obs: realmente, daria um filme muuiito bom. eu mesmo, iria na pré-estreia ! Parabens.

Diego disse...

Parabéns Estevão ! O livro está ótimo e com certeza daria um grande filme ! :D